14 de março de 2016

Ateísmo “engraçadinho” existe desde a Antiguidade, diz historiador britânico

Intelectuais com status de celebridade e língua afiada, que dominam a ciência de ponta e não perdem a oportunidade de ridicularizar a crença em Deus com tiradas que viram memes. A descrição bate com a de figuras do século XXI, como o físico Stephen Hawking ou o biólogo Richard Dawkins, mas também vale para pensadores que já estavam na ativa uns 2500 anos antes de Cristo.

Pelo visto, quando o assunto é o ateísmo militante, quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas. Essa talvez seja a principal mensagem de "Battling the Gods: Atheism in the Ancient World" (Lutando contra os Deuses: Ateísmo no Mundo Antigo), novo livro do historiador britânico Tim Whitmarsh.

Professor de cultura grega da Universidade de Cambridge, Whitmarsh resolveu recuperar a longa tradição de ceticismo em relação à religião do antigo Mediterrâneo, que parece ter surgido com os primeiros filósofos da Grécia, a partir de 600 a.C., e só desapareceu quase mil anos mais tarde, quando o cristianismo virou a religião oficial do Império Romano, em 380 d.C.

Para o especialista de Cambridge, a análise da obra desses pensadores demonstra que a descrença não é um fenômeno recente na história ocidental. Em vez de ter surgido apenas com o Iluminismo, há "meros" 200 anos, o ateísmo seria uma opção possível em qualquer ambiente onde houvesse alguma liberdade de pensamento.

O historiador argumenta que a Grécia antiga era um ambiente desse tipo justamente por causa de sua natureza algo caótica e descentralizada.

Em vez de ser uma nação unificada, como a Grécia de hoje, o território helênico estava dividido em centenas de cidades-Estado modestas. Sem governo central, cada cidade era livre para ter suas próprias formas de culto aos deuses, com inúmeras divindades e sacerdotes sem grande poder político. Em resumo, seria impensável o surgimento de uma "Inquisição" helênica.

Os gregos também não tinham um equivalente da Bíblia hebraica. A analogia mais próxima eram os textos épicos do poeta Homero, que eram admirados como literatura e manual de conduta aristocrática, mas retratavam deuses muito parecidos com mortais: briguentos, ciumentos e com poderes limitados, apesar de imortais.

Conforme várias das cidades gregas foram crescendo economicamente e ficando culturalmente sofisticadas, por meio do comércio com o Egito e o Oriente Médio, surgiram pensadores que estão entre os primeiros do mundo a tentar explicar os fenômenos da natureza e a origem do Universo de maneira racional, sem recorrer à ação divina.

Apesar de não serem muito afeitos a fazer experimentos para testar suas hipóteses, tais filósofos podem ser considerados precursores da ciência moderna - um de seus "chutes" mais bem dados é a ideia de que a matéria do Cosmos é composta de átomos.

Alguns desses sujeitos até falavam de forma vaga numa Inteligência cósmica ou Deus único que teria ordenado o Universo de maneira racional, mas Whitmarsh argumenta que, em muitos casos, essas vagas referências a divindades parecem metáforas que, na verdade, descrevem um princípio cósmico impessoal. De qualquer modo, eles não poupavam críticas à crença nos deuses gregos, como Zeus, Atena e Afrodite, considerando que as histórias sobre seus casos de amor e brigas eram ridículas.

Ideias ousadas contra a religião tradicional teriam ganhado fôlego ainda maior com o surgimento da democracia em Atenas, por volta de 500 a.C. A liberdade política e de expressão na cidade mais famosa da Grécia - todo cidadão podia participar diretamente da votação de leis e do julgamento de crimes, por exemplo - criou uma cultura essencialmente laica, e o ateísmo passou a ser tema até de comédias, como as de Aristófanes.

Em sua obra "Os Cavaleiros" (encenada em 424 a.C.), dois escravos conversam justamente sobre a falta de fé. "Tu acreditas mesmo em deuses?", diz um deles. "Claro", responde o outro, "a prova de que eles existem é que fui amaldiçoado por eles".

Nas décadas que se seguiram, os questionamentos contra a religião se tornaram elementos importantes no surgimento de duas correntes filosóficas que acabaram virando meros adjetivos na nossa linguagem de hoje, os céticos (que duvidavam da possibilidade de comprovar qualquer afirmação, inclusive as feitas sobre supostos deuses) e os cínicos (a palavra vem do termo grego para "cão", porque eles defendiam uma vida totalmente "natural", sem as restrições impostas pelos hábitos sociais - como a vida de um cachorro, portanto).

Embora vários dos ateus da Antiguidade tenham sido criticados e até processados, Whitmarsh diz que raramente eles sofriam consequências sérias porque a religião dos gregos e romanos valorizava principalmente os rituais (sacrifícios de animais aos deuses, por exemplo) e não se preocupava tanto com o que as crenças das pessoas. Como a maioria dos ateus não defendia que se interrompessem os sacrifícios, por exemplo, eram deixados em relativa paz.

A coisa teria mudado de figura com a ascensão do cristianismo, diz o pesquisador - a ideia de que uma única crença era a verdade absoluta pode ter aberto caminho para a perseguição aos descrentes.

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