“Ouve,
Israel. O Senhor é nosso Deus. O Senhor é um”.
Assim começa o Shemá, a reza mais importante do
judaísmo. Ao repeti-la duas vezes ao dia, os judeus professam sua fé exclusiva
em Yahweh, deus único, onipotente, onisciente. Esse é o deus mais popular do
mundo: entre cristãos, judeus e islâmicos, 3,6 bilhões de pessoas professam uma
das versões do culto a Yahweh, mais de metade de todos os seres humanos. Qual é
a origem desse Deus com maiúscula, que dominou meio mundo? E de onde surgiu
essa ideia que há apenas um deus, ao contrário do que quase todos os povos
acreditaram durante a História?
Canaã era um território que correspondia às terras
de Israel, Palestina, Líbano, Jordânia e Síria. Os cananeus se dividiam em
pequenos reinos, como Moab, Amon e Edom, e cidades-estado, como Tiro, Sidon e
Biblos - os habitantes dessas últimas ganharam dos gregos o apelido de
"fenícios" e fundaram um império. Cananeus falavam línguas semíticas
muito próximas, usavam o mesmo alfabeto e cultuavam mais ou menos os mesmos
deuses. Cercados por todos os lados de pagãos cananeus, falando quase a mesma
língua e usando o mesmo alfabeto, mesmas roupas e mesmos utensílios, viviam os
hebreus, no Reino de Israel - que, no entanto, não se consideravam cananeus. Ou
ao menos não se consideravam na época em que a Tanakh (o Velho Testamento) foi
escrita, entre os séculos VI e V a.C., contando sua origem estrangeira.
Essa migração não foi confirmada pela Arqueologia.
Não há evidências de uma grande colonização estrangeira na região. Não há menção
egípcia ao cativeiro dos hebreus. As campanhas militares do final da Era do
Bronze tinham outros protagonistas: os egípcios, que tratavam a região como seu
quintal, e os povos do mar, que a invadiram pelo norte. Em 1400 a.C., quando
Josué teria conquistado Jericó, a cidade estava deserta há quase dois séculos.
Em outras palavras, os hebreus não eram inimigos
dos cananeus. Eles eram cananeus.
"O crescente consenso entre os
arqueólogos é que, no início, a maioria dos israelitas era cananeu",
diz Robert Gnuse, professor de Velho Testamento na Universidade de Loyola, EUA.
"Aos poucos, as pessoas que
desenvolveram uma identidade israelita tenderam a viver no alto das colinas de
Canaã. Já as que mantiveram a identidade canaanita habitavam as planícies".
A Bíblia narra a história dos hebreus como a
imposição de um deus estrangeiro a pagãos canaanitas. "Graças ao relato bíblico, o monoteísmo da
antiga Israel tem sido considerado uma revolução contra o pensamento religioso de
seus vizinhos", diz Mark S. Smith, professor de Estudos Bíblicos na
Universidade de Nova York, no livro “The
Origins of Biblical Monotheism”. "Porém,
estudos mais recentes têm buscado situar a história bíblica do monoteísmo em
seu contexto cultural mais amplo", isto é, o contexto do politeísmo
canaanita.
Textos e artefatos encontrados em Ugarit (atual Ras
Shamra, na Síria), datados dos séculos XV a XII a.C., indicam que os hebreus
cultuavam o panteão de deuses cananeus. "As quatro camadas da sociedade humana - rei, nobres, camponeses e
escravos - eram espelhadas em quatro camadas de divindades", diz o
historiador canadense K. L. Noll no artigo “Canaanite
Religion”. O topo do panteão era ocupado por um deus chefe, El, e por sua
esposa, Asherah. Abaixo vinham os deuses cósmicos, como Baal e Anath, que
controlavam a tempestade, a fertilidade e outros aspectos naturais. Na terceira
camada vinham os deuses que auxiliavam na vida diária das pessoas, como
Kothar-wa-Khasis, o deus da habilidade. Por fim os mensageiros, que não eram
mencionados por nome.
Essa hierarquia de deuses é chamada de henoteísmo
(ou monolatria). "Há uma distância
muito curta entre essa noção henoteísta e a ideia monoteísta, ou seja, a de que
um deus é realmente Deus e quaisquer outros seres sobrenaturais são criaturas
insignificantes sob seu comando", diz Noll. "A religião da Bíblia deu esse passo". Entre os hebreus, os
deuses das duas camadas intermediárias foram eliminados, restando apenas o
deus-chefe e os mensageiros. "Anjo" vem do grego angelos, tradução para o hebraico malak, "mensageiro".
El, o deus-chefe cananeu, é um dos nomes de Deus na
Bíblia, geralmente com um adjetivo, como El Shaddai, "deus todo poderoso" ou Elohim, "deus dos deuses". O nome Yahweh, por sua vez, não aparece em
textos de outros cananeus. A primeira menção a Yahweh é em inscrições egípcias
do século XIV a.C., que se referem aos "nômades de Yahweh" e o associam com pessoas que viviam em Edom
- não nas terras dos hebreus, mas um pouco mais ao sul.
O Velho Testamento parece sugerir uma origem
politeísta, principalmente em seus livros mais antigos. Existe várias passagens
como "Senhor, quem é como Tu entre
os deuses?" (Êxodo 15:11). Ou: "Terrível é Deus na assembleia dos santos, maior e mais tremendo que
todos os que o cercam" (Salmos 89:7), que parece falar em algum tipo
de panteão.
Quando o culto a Yahweh se expandiu ao norte, a
religião dos hebreus começou a mudar. "Primeiro,
houve uma fusão de várias divindades na figura de Yahweh, entre elas El,
Asherah e Baal", diz Mark Smith. Basta ler os poemas bíblicos mais
antigos para perceber essa fusão de deuses. Na Bíblia, Yahweh assume os
atributos de Baal como senhor da tempestade ("A voz do Senhor despede relâmpagos", Salmos 29:7). Achados
arqueológicos mostram sua fusão com El, ao assumir a esposa dele: em um templo
hebreu do século IX a.C., está escrito: "Yahweh de Samaria e sua Asherah". Em uma tumba do século VIII
a.C. do reino de Judá, alguém deixou: "Yahweh
e sua Asherah". Sim, os hebreus achavam que Deus era casado.
Ao longo dos séculos, sacerdotes, profetas e
monarcas reforçaram o culto exclusivista a Yahweh. Por volta de 700 a.C.,
definitivamente havia uma religião separada daquela praticada pelos vizinhos,
com um grande foco nesse deus. Mas não era universal. "Se você entrasse numa máquina do tempo e
voltasse à Palestina daquela época, veria que a maioria das pessoas era
politeísta. Outras eram henoteístas. Mas elas não se definiam assim. Não se
preocupavam com isso", diz Gnuse.
No entanto, um acontecimento mudaria essa história
para sempre. Em 586 a.C., as muralhas de Jerusalém vieram abaixo. O rei
babilônio Nabucodonosor invadiu a cidade, queimou o mítico Templo dedicado a
Yahweh e mandou boa parte dos judeus para o exílio na Babilônia. "O exílio durou apenas meio século, mas teve
uma força criadora impressionante", diz o historiador britânico Paul
Johnson no livro História dos Judeus. "Assim
como os períodos de Abraão e Moisés haviam produzido a religião de Yahweh, os
anos durante e pós-exílio desenvolveram e refinaram o judaísmo".
Durante o exílio, rabinos e escribas compilaram e editaram as tradições orais e
os pergaminhos trazidos do templo destruído, agregando textos novos para
reverenciar Yahweh e condenar o culto a outros deuses, dando origem ao Tanakh,
o livro sagrado do judaísmo, o que deu forma definitiva à religião. Em 539 a.C.,
o rei persa Ciro derrotou os babilônios e permitiu a volta dos judeus para
Canaã, o que foi visto como uma intervenção direta de Yahweh. Nos anos que se
seguiram, os editores deram os últimos retoques no seu novo projeto de fé.
Na Bíblia,
um Deus em mutação
A Bíblia é como uma biblioteca: ela é formada por
livros escritos por diferentes autores ao longo de séculos, reunidos fora de
ordem cronológica. Os especialistas distinguem quatro grupos de autores
principais, cada um deles identificado por uma letra. Os primeiros a escrever,
provavelmente na primeira fase da monarquia israelita (922-722 a.C.), foram do
grupo "J" (do reino de
Judá, que chamava seu deus de Yahweh) e "E" (de Israel, que preferiam o título divino mais formal
Elohim). J deu a Yahweh
características bastante humanas. No Gênese, por exemplo, Deus se arrepende,
fica zangado e grita com Noé. Já a visão de E
é mais transcendente: Elohim quase não fala; prefere mandar um anjo como
mensageiro.
"Mas nem J nem E acreditavam
que o deus israelita era totalmente monoteísta", diz a historiadora
das religiões Karen Armstrong no livro “A
Bíblia - Uma Biografia”. Isso mudou com as duas escolas posteriores: "P" (priests, "sacerdotes") e "D" (Deuteronomistas), que começaram a escrever após a
destruição do reino de Israel pela Assíria (722 a.C.) e continuaram durante o
exílio da Babilônia (586-539 a.C.). Eles projetaram a imagem de Yahweh como o
Deus único. Quando os editores finais da Bíblia Hebraica juntaram todo o
material, em algum momento entre os séculos VI e IV a.C., Deus havia se
transformado. O velho deus nacional de Israel, que convivia com o panteão
cananeu, tinha ficado para trás. Ele agora era Yahweh, o Deus todo-poderoso do
Universo.
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