15 de abril de 2014

Uma cosmologia medieval reformulada pela matemática moderna

E assim, a luz (…), pela sua natureza mesmo, multiplicou-se infinitas vezes e espalhou-se uniformemente em todas as direções. Foi desta forma que, no início do tempo, ela estendeu a matéria, que não podia deixar atrás, arrastando-a com ela e formando uma massa do tamanho do Universo material”. Esta descrição do início do cosmos, muito evocadora da moderna teoria do Big Bang, foi escrita… em latim, por um bispo e cientista medieval inglês, Robert Grosseteste (c.1175-1253).

Agora, foi revisitada por uma equipa internacional de físicos, cosmólogos, historiadores, filósofos, latinistas, no âmbito de um projeto apoiado pelo Conselho britânico de Investigação nas Artes e Humanidades. “Este projeto representa uma maravilhosa e única fusão entre especialistas medievais e cientistas modernos”, disse Giles Gasper, medievalista da Universidade de Durham (Reino Unido) e um dos principais autores do trabalho.

O estudo revelou que os problemas teóricos com que se defrontam os cosmólogos modernos já existiam há oito séculos antes (apesar de ser muito improvável que Grosseteste tivesse consciência deles). Os resultados vão ser publicados em breve na revista Proceedings of the Royal Society A.

Em 1225, no seu curto tratado Da luz ou o início das formas, Grosseteste expunha a primeira explicação científica de sempre da origem do Universo. Claro que, na altura, pensava-se que a Terra, imóvel, era o centro de tudo e que as estrelas e os planetas giravam em torno dela. Grosseteste não dispunha de ferramentas matemáticas para traduzir as suas palavras em fórmulas. E também não inventou a teoria do Big Bang, que deriva das equações da Teoria de Relatividade de Einstein e descreve uma realidade física totalmente diferente.

Mesmo assim, o texto (disponível desde 1942 numa tradução em inglês) não deixa de ser impressionante pela modernidade das ideias que expõe. Foi por isso que Gasper e Richard Bower, físico da mesma universidade, juntamente com outros colegas, quiseram reinterpretá-las à luz da linguagem matemática de hoje – e a seguir, simulá-las num computador para ver se produziriam um Universo tal como Grosseteste o concebia no século XIII.

O trabalho que Grosseteste fez no seu De Luce é nada menos do que revolucionário”, disse Bower. “A sua explicação do Universo vai para além de todas as anteriores. Aristóteles concluíra que o Universo não tinha início nem fim, mas Grosseteste diz exatamente o contrário, começando por propor uma nova teoria da matéria e desenvolvendo-a numa explicação da criação do Universo. Ou seja, trabalha como um cosmólogo moderno, propondo leis físicas e seguindo-as até ao fim. Acho isso espantoso”.

A cosmologia medieval estipulava, com base nas ideias de Aristóteles, que o Universo estava dividido em dez “esferas” concêntricas (a décima e mais exterior, o Paraíso cristão, fora acrescentada mais tarde). De fora para dentro, seguiam-se mais oito, correspondentes ao firmamento (que continha as estrelas), Saturno, Júpiter, Marte, o Sol, Vénus, Mercúrio e a Lua. A primeira esfera, no centro, era a da Terra e era composta por quatro “sub-esferas” dos quatro elementos: fogo, ar, água e terra.

Tal como fazem hoje os cosmólogos para explicar o que a ciência moderna revela acerca do Universo, Grosseteste concebeu a sua teoria de forma a explicar essa visão medieval. Diga-se que, ao longo do seu trabalho, os autores se preocuparam em não “contaminar” a forma de pensar de Grosseteste com ideias modernas: “É crucial evitar sobrepor uma visão moderna do mundo ao pensamento de Grosseteste”, escrevem no seu artigo.

Multiversos medievais

O texto do cientista medieval explica como as interações entre luz e matéria, que para ele são “inseparáveis”, vão dando origem consecutivamente as esferas celestiais. Isso acontece, explica, devido à rarefação da matéria à medida que ela se afasta do ponto de origem (arrastada pela luz), e ao fato de, uma vez atingido o limite do seu percurso, a luz ser irradiada da periferia para o centro sob uma outra forma, desta vez comprimindo a matéria. “Tanto quanto sabemos, De Luce é o primeiro exemplo trabalhado a mostrar que um único conjunto de leis físicas poderia dar conta de estruturas tão diferentes como a Terra e o céu”, salienta a equipa num comentário na última edição da revista Nature. O que, acrescentam, “demonstra quão avançada era a filosofia natural no século XIII – que certamente não foi uma Idade das Trevas”.

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