O historiador francês
especializado na Idade Média Jacques Le Goff, um dos idealizadores da corrente
conhecida como "Nova História", faleceu nesta terça-feira (1) em Paris, aos 90 anos.
Le Goff dedicou boa parte de sua
longa carreira à antropologia medieval, disciplina que enriqueceu ao abordar
todos os aspectos da vida em sociedade. Dentro da tradição dos grandes
historiadores franceses, não hesitava em sair de sua especialidade para opinar
sobre temas da atualidade.
Nascido em 1º de janeiro de 1924,
este brilhante historiador sucedeu em 1972 Fernand Braudel na direção da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais.
A partir dos anos 70 foi um dos pais do movimento "Nova História", com uma reflexão sobre a profissão do
historiador em ensaios como "Faire
de l'histoire" (1986, Fazer
História, com Pierre Nora) ou "Histoire
et mémoire" (História e memória,
1988).
Últimas obras
A história pode ser contada de
várias maneiras, mas, para entender seu significado, é preciso que o imaginário
de cada época seja estudado sem preconceito – e decifrado, como o fez Le Goff
em seus dois livros sobre o período injustamente chamado de “Idade das Trevas”. Le Goff, que escreveu
sua primeira obra sobre a Idade Média em 1956, falando de comerciantes e
banqueiros, retoma agora o tema num outro patamar em A Idade Média e o Dinheiro (Civilização Brasileira).
Simultaneamente, a editora Estação Liberdade lança o luxuoso Homens e Mulheres da Idade Média, livro
fartamente ilustrado que retrata 112 santos, heróis e figuras mitológicas que
alimentaram o imaginário do homem medieval.
Le Goff, que descobriu a Idade
Média ainda criança, lendo o romance Ivanhoé (1820), de sir Walter Scott
(1771-1832), ficou fascinado com os personagens secundários desse que é
considerado o primeiro romance histórico e que descreve a luta entre saxões e
normandos. Quando, mais tarde, escreveu sobre o personagem do cavaleiro na
Idade Média, veio à memória do medievalista o cavaleiro Wilfred de Ivanhoé e o
perverso templário Brian de Bois Guibert, adotados como referências. Le Goff fez,
em Homens e Mulheres da Idade Média,
um exercício de antropologia histórica para oferecer um panorama fascinante do
período com a colaboração de outros historiadores.
Chama a atenção nesse seu livro a
predominância de santos entre os homens e mulheres escolhidos por sua equipe de
colaboradores. Le Goff justificou: os santos, para ele, eram uma “particularidade própria do cristianismo,
pois não têm correspondentes nas outras religiões”. São os novos heróis,
uma “novidade na paisagem europeia”
medieval. Le Goff discordava de outros historiadores – especialmente os ingleses
– quando esses se referiam à Idade Média como um período obscurantista.
A “Idade das Trevas”, dizia ele, foi uma invenção dos humanistas do
Renascimento. Para Le Goff, ao contrário, a Idade Média “foi um longo período criativo e dinâmico” – e cujos traços
essenciais, enfatiza, “estendem-se até o
século XVIII, período em que ocorrem os dois acontecimentos fundamentais que
criam a modernidade: o nascimento da indústria na Inglaterra e a Revolução
Francesa”.
Le Goff não fazia vista grossa
para os aspectos negativos da Idade Média, que viu nascer a Inquisição, crescer
a intolerância religiosa, a tortura, o senso hierárquico da aristocracia e o
macabro. Mas lembrava que a Idade Média foi também a da promoção da mulher, por
meio do discurso filosófico de São Tomás de Aquino (1225-1274), o primeiro a
afirmar que homens e mulheres são iguais perante Deus. Tomás tomou o hábito
dominicano contra a vontade da mãe Teodora – ela mandou raptá-lo na estrada sem
conseguir dissuadir o filho da ideia. Foi o teólogo escolástico de maior
importância nessa época, marcada, segundo Le Goff, pelo nascimento da
laicidade. Mais um choque. Por que na Idade Média? Porque, na Antiguidade, tudo
era sacralizado. “Foi no período medieval
que se fez, pela primeira vez, a distinção entre o sagrado e o profano”.
É curioso que o historiador, no
livro, trate personagens reais, como Santo Agostinho de Hipona, São Francisco
de Assis e Santa Clara com a mesma reverência com que destaca figuras
mitológicas como a Melusina, uma mulher-dragão que surge na literatura latina
do século XII e foge quando aspergida com água benta. Le Goff confessou ser
fascinado por ela, um híbrido de fada, figura diabólica, amante e mãe dedicada
de vários filhos, por vezes representada como uma sereia.
Para encarnar o mal, Le Goff
preferiu a figura do diabo, oferecendo uma biografia de Satã ao lado de um
ensaio sobre o papel da Virgem Maria como promotora real da mulher numa época
em que o poder estava nas mãos dos homens. O culto à Virgem, do século XII em
diante, foi, segundo o historiador, fundamental para que a dama do sistema
feudal fosse elevada a uma categoria superior ao “vassalo” de pernas peludas.
Há também, entre os biografados,
figuras transformadas em mitos, como o rei Arthur, o cavaleiro Roland e o
popular Robin Hood. A maioria dos personagens pertence à religião cristã.
Judeus e muçulmanos são raros na lista, a despeito de terem sido numerosos na
Península Ibérica no século XV. Ele abriu uma concessão para Averróis (1126-1198),
nascido na Espanha muçulmana – e, ainda assim, por ter sido estudado por
escolásticos cristãos, que o tinham na mais alta conta. Há também o curdo
Saladino (1137-1198), viril herói dos romances de cavalaria que, apesar de
expulsar os cristãos da Palestina, virou ídolo entre eles, assim como dos
muçulmanos (exceto os xiitas). Sua contrapartida é o rei Ricardo Coração de
Leão (1157- 1199), que Saladino considerava um tanto amalucado, a ponto de
arrancar o coração de um leão com as mãos.
O livro de Le Goff é um
correspondente contemporâneo da Legenda Áurea com personagens do mundo laico.
Revê mitos como o do pintor Giotto (1267-1337), que o historiador retratou como
diretor de uma verdadeira empresa de pintura – e um tanto cínico, compondo
canções que falavam mal dos pobres enquanto o artista, rico, pintava cenas
sacras. Dante Alighieri (1265-1321), o autor de A Divina Comédia, considerado a Idade Média em pessoa, não escapa
igualmente das críticas, a despeito de a colaboradora de Le Goff, Jacqueline
Risset, reconhecer em seu clássico um “milagre
poético” cuja beleza anunciou a modernidade. Dante, a exemplo de Giotto,
foi um humanista “irônico e indomável”
com irresistível vocação para disputas políticas (condenado à morte, ele foi
banido de Florença, morrendo no exílio).
Numa época obcecada pelo Juízo Final e marcada por calamidades como a peste negra, é compreensível que a Idade Média termine no livro com um estudo sobre Satã. Uma primeira “explosão diabólica” ocorreu nos séculos XI e XII. Mas foi o inferno da Divina Comédia que marcou simbolicamente a passagem entre épocas, anunciando com muita antecedência o espírito renascentista.
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